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Reflexões a partir da ação de nulidade em trâmite na Corte de Apelações de Santiago
30/10/2025 às 13:20 atualizado em 30/10/2025 às 13:23
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Recente "caso Australis" reacendeu um debate central no mundo jurídico: até onde vai a autonomia da arbitragem e onde começa o dever de controle do Estado? | Depositphotos
Texto também conta com o apoio da advogada Elizandra Camargo.
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O recente “caso Australis” reacendeu um debate central no mundo jurídico: até onde vai a autonomia da arbitragem e onde começa o dever de controle do Estado?
A disputa teve início no Chile, mas vem sendo acompanhada por toda a comunidade jurídica internacional. Em jogo está a validade de um laudo arbitral que, segundo especialistas, ultrapassou os limites do pedido formulado pelas partes — e decidiu com base na “equidade”, sem autorização para tanto.
O contexto do caso
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O processo nº 17067-2025, em trâmite na Corte de Apelações de Santiago, discute a anulação de um laudo proferido por um tribunal da Câmara de Comércio de Santiago (CAM). A controvérsia envolve a Joyvio Group, gigante chinesa do setor alimentício, e a família Quiroga, antiga controladora da Australis Seafoods, uma das maiores produtoras de salmão do Chile.
A venda da empresa, no valor de US$ 920 milhões, culminou em uma disputa arbitral milionária. Em agosto de 2025, o tribunal arbitral reconheceu que não houve fraude, dolo ou omissão por parte dos vendedores. Mesmo assim, condenou-os a pagar US$ 217 milhões, não a título de indenização (como havia sido pedido), mas como um “ajuste de preço” — figura que não foi solicitada nem debatida durante o processo.
A decisão, considerada inédita, levantou sérias dúvidas sobre os limites da atuação arbitral e sobre até onde o controle judicial pode — ou deve — ir para corrigir distorções graves.
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Críticas internacionais e o problema do extra petita
O laudo foi amplamente criticado por grandes nomes da arbitragem internacional. O professor Yves Derains, ex-secretário-geral da Corte de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional, afirmou que o tribunal chileno decidiu fora do pedido e violou o contraditório. Segundo ele, “um laudo assim seria anulado em quase todos os países do mundo”.
De forma semelhante, Gary Born, um dos mais respeitados especialistas no tema, classificou a decisão como “uma das mais aberrantes” de sua carreira.
Ambos sustentam que o tribunal arbitral criou uma solução que não foi pedida pelas partes, desconsiderou o contrato e julgou com base em critérios próprios de justiça e razoabilidade — o que, em direito, se denomina decisão ex aequo et bono, ou por equidade.
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O problema, apontam, é que as partes nunca autorizaram esse tipo de julgamento.
Quando o árbitro decide por “justiça própria”.
No caso Australis, o tribunal arbitral reconheceu que o direito aplicável era o chileno, mas acabou se afastando dele. Em vez de aplicar a lei e o contrato, optou por critérios de equidade e “justiça contratual”. Para Gary Born, isso constitui excesso de poder arbitral, uma vez que o tribunal “substituiu o direito aplicável e o acordo das partes por suas próprias preferências”.
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A legislação chilena (Lei nº 19.971) é clara: o árbitro só pode decidir por equidade se houver autorização expressa das partes. Mesmo nesses casos, deve respeitar o contrato e os usos comerciais.
No caso em análise, não havia essa autorização.
O tribunal, portanto, violou os limites da convenção de arbitragem, o que fundamenta o pedido de anulação do laudo.
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E se o caso fosse no Brasil?
A legislação brasileira sobre arbitragem (Lei nº 9.307/1996) segue a mesma lógica. O árbitro é juiz de fato e de direito, mas não pode decidir fora do pedido nem criar obrigações não pleiteadas.
A sentença arbitral pode ser anulada se:
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O controle judicial é de legalidade, e não de mérito. O Judiciário não reexamina se a decisão foi “justa”, mas apenas se respeitou o contrato e o procedimento.
O Superior Tribunal de Justiça tem reiterado essa posição. Em 2020, decidiu que “o controle judicial sobre a validade das sentenças arbitrais é formal, não sendo lícito ao juiz reavaliar o mérito” (AgInt no AREsp 1.566.306/SP - 2019/0249470-9).
Assim, se o caso Australis fosse julgado no Brasil, o laudo poderia ser anulado com base nos artigos 32, VIII e 2º, § 3º, da Lei de Arbitragem, por extrapolar o que foi autorizado e adotar um critério de equidade não previsto.
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Entre a autonomia arbitral e o Estado de Direito
O episódio ilustra o dilema contemporâneo da arbitragem: como preservar sua autonomia sem perder segurança jurídica. A arbitragem é valorizada por sua agilidade e tecnicidade, mas não está imune a erros.
Cabe ao Judiciário atuar como guardião dos princípios básicos — contraditório, legalidade e ordem pública — garantindo que a busca por eficiência não ultrapasse o Estado de Direito.
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O caso Australis mostra que confiança na arbitragem depende também de mecanismos eficazes de correção, especialmente quando o tribunal vai além do que as partes consentiram. A decisão de conceder um “ajuste de preço” sem pedido prévio rompeu a previsibilidade essencial às relações contratuais.
Esse tipo de surpresa mina a segurança jurídica e pode gerar efeitos semelhantes aos da morosidade judicial: incerteza e desconfiança.
Conclusão
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Pela dimensão econômica e pela relevância dos princípios processuais envolvidos, o caso Australis tende a marcar uma virada no debate sobre os limites da atuação arbitral.
O desfecho da ação de nulidade em Santiago mostrará até que ponto os tribunais nacionais estão dispostos a intervir diante de laudos que, embora autônomos, excedam o consentimento das partes.
Mais do que uma disputa entre empresas, o episódio reafirma a importância do equilíbrio entre autonomia arbitral e Estado de Direito, pilares de qualquer sistema de justiça confiável — seja no Chile, no Brasil ou em qualquer outro país que aposta na arbitragem como instrumento legítimo de resolução de controvérsias.
Por Elizandra Camargo. Advogada. Sócia do escritório Camargo & Heiderich Advogados. É pesquisadora em Direito Internacional e Arbitragem Comercial. Atua em litígios empresariais.
Prof. Bruno Camargo da Silva. Advogado. Sócio do escritório Camargo Silva Advogados e Consultores. Professor de Direito Administrativo e Empresarial, especialista em licitações públicas e autor do Guia Prático de Publicidade Legal das S/A. Atua como coordenador jurídico da ABRALEGAL e consultor de agências e veículos de comunicação especializados em publicidade oficial.
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