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Eu, um menino crente, criado na Primeira Igreja Batista de Niterói, havia aprendido que Deus não aprovava o consumo de bebidas alcoólicas
11/10/2025 às 09:30
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No coquetel Fitzgerald vão gin, suco de limão-siciliano, xarope de açúcar e Angostura bitter; bebida é finalizada com uma casca de limão-siciliano | Divulgação/Fords Gin
Aprendi muito cedo o que significa a palavra ressaca. Nos anos 1980, em plena adolescência, encontrei uma garrafa de conhaque escondida no armário da despensa do apartamento onde morava com meus pais. Curiosamente, eles nunca foram de beber.
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Eu, um menino crente, criado na Primeira Igreja Batista de Niterói, havia aprendido que Deus não aprovava o consumo de bebidas alcoólicas. Mas as ameaças de morte eterna - ou instantânea - começaram a perder o sentido quando percebi que a tal ressaca passava, e a vida seguia.
Já na fase adulta, me apaixonei pelo vinho. Comecei a pesquisar, tentando ampliar meus conhecimentos, e acabei descobrindo um mundo lindo e encantador em torno dessa bebida milenar.
Minha preferência recai sobre os malbecs argentinos. Trata-se de um universo em que, por mais que se explore, nunca se atinge o conhecimento completo. E, para quem aprecia uma boa degustação, como eu, deixo uma dica: beba pouco para beber sempre. Para mim, o porre, a ressaca e a estupidez da embriaguez deixaram de fazer sentido.
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Minhas ressacas agora são outras - de outra natureza. Como a ressaca das escolhas.
Aos 54 anos, que completo no próximo dia 22, tenho valorizado muito o meu tempo. Inclusive o tempo vago, o ócio, o famoso “nada pra fazer”. E foi justamente daí que tirei o termo ressaca das escolhas.
Cada escolha de convívio social mal feita - ou feita contra a minha vontade - tem me causado um verdadeiro enjoo. Uma espécie de mal-estar que invade a alma e toma conta de todo o meu ser. Não sei se é a idade ou algo parecido, mas minha bateria social anda cada vez mais curta — e mais seletiva.
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O problema é que um evento social que me desagrada no dia não termina ali. Ele ecoa dentro de mim e me agonia por dias.
Há algumas semanas, fui a uma festa de uma grande amiga. O convite anunciava um bar com música ao vivo e drinks personalizados, feitos sob encomenda. Meu instinto avisava: “É uma emboscada.” Mas, diante de tanta insistência, acabei confirmando presença. Poderia ter inventado uma desculpa qualquer, mas, como a mosca atraída pela teia da aranha, lá estava eu, dizendo que iria à tal festinha.
Aliás, festa estranha com gente esquisita… ou o esquisito sou eu?
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(Pergunta retórica. Não precisa me responder.)
Pois bem, adentrei a festa e pedi um vinho. Diante da negativa, resolvi experimentar um Fitzgerald - drink da moda (e, sinceramente, nem sei se é assim que se escreve).
Bebi um, pedi o segundo e já comecei a sentir uma imensa vontade de picar a mula - expressão que meu pai usa quando quer dizer que vai embora.
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Ainda não havia a onda de bebidas contaminadas com metanol, então pensei em pedir o terceiro, mas fui alertado pela minha esposa sobre uma possível ressaca no dia seguinte. Dito e feito.
Após duas horas de festa e apenas dois drinks, decidi ir embora.
No dia seguinte, não havia vestígios de uma ressaca alcoólica. O que me abateu foi outra coisa: uma ressaca moral. Um sentimento de tempo perdido, de mau uso das minhas horas. Uma sensação incômoda de que teria sido muito melhor mandar flores e um cartão. Uma vontade de voltar no tempo e simplesmente ter escolhido não ir.
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Era como se minha vida tivesse um banco de horas — e eu tivesse gasto, à toa, preciosos minutos. Não se trata de desprezo por quem me convidou, mas de um apreço extremo pelo meu sono, pelo meu sofá, pela minha meditação, pela minha tacinha de vinho na varanda. Enfim, pela calmaria do meu lar.
E por que escrever sobre isso?
Escrevi na esperança de que outras pessoas se identifiquem e me ajudem a perceber que não estou sozinho nesse estado que alguns chamam de velhice precoce.
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Será que é mesmo coisa da idade? Será que estou ficando ranzinza? Seja o que for, esse episódio me fez pensar numa lista de desculpas prontas que servem para qualquer ocasião. A lista é extensa e vai desde “minha religião não permite” até “meu ornitorrinco está com cólicas e eu não posso deixá-lo sozinho.”
Então, se num futuro próximo você me convidar para algum evento social e ouvir uma dessas desculpas, saiba que não é nada pessoal. É só que estou tentando evitar a ressaca das escolhas.
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