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A história de Maria da Penha revelou um padrão de violência e impunidade que ainda desafia políticas públicas e a sociedade | Foto: Reprodução/Wikimedia Commons
Em 1983, a farmacêutica Maria da Penha, que na época tinha 38 anos, dava entrada em um hospital de Fortaleza, com lesões irreversíveis na terceira e quarta vértebras torácicas, laceração na dura-máter e destruição de um terço da medula à esquerda.
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Quando questionado pela polícia, Marco Antonio Heredia Viveros, colombiano com quem Maria era casada, disse aos oficiais que os tiros haviam sido feitos por assaltantes que invadiram a casa do casal.
Mas a verdade é outra: quem de fato fez os disparos foi o próprio Marco Antonio. Um tiro nas costas que deixou Maria da Penha paraplégica. A versão dada pelo marido foi posteriormente desmentida pela perícia policial.
Quatro meses depois da primeira tentativa de homicídio, Maria retorna ao seu lar após passar por cirurgias, internações e tratamentos. Foi então que Marco Antonio a manteve em cárcere privado por 15 dias. E, não satisfeito com sua primeira perversidade, ele tenta outra vez: tenta matá-la eletrocutada durante o banho.
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Em 1991, o ex-marido é julgado pela primeira vez – sim, oito anos depois – mas não foi condenado. O segundo julgamento aconteceu cinco anos depois, e Marco Antonio foi condenado a 10 anos e 6 meses de prisão, mas depois de seus advogados alegarem irregularidades processuais, a sentença não foi cumprida.
Marco Antonio Heredia Viveros foi preso em 2002 – 19 anos após tentar pela primeira vez contra Maria da Penha. Ele passa 2 anos em regime fechado no Ceará, depois mais 6 anos em regime semiaberto, depois mais 1 ano em liberdade condicional.
A história de Maria da Penha não foi apenas um caso isolado. Ela era o retrato de uma era, um exemplo do que acontecia no Brasil sistematicamente, sem que os agressores fossem punidos. Mas, mais do que isso, é o reflexo de uma realidade cruel que ainda persiste na vida das mulheres brasileiras.
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Em julho de 2025, Juliana Garcia foi espancada pelo ex-jogador de basquete Igor Eduardo Pereira Cabral dentro de um elevador em Natal, no Rio Grande do Norte. A agressão, composta por mais de 60 socos, foi registrada pelas imagens de segurança.
Igor Eduardo foi preso preventivamente um dia depois das agressões. Segundo o agressor, os 60 socos foram o resultado de uma crise de claustrofobia.
Tanto Maria quanto Juliana foram vítimas de seus companheiros, mas a diferença entre elas é a mudança na legislação brasileira entre um crime e outro.
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Conforme se verificou, era preciso tratar o caso de Maria da Penha como uma violência contra a mulher em razão do seu gênero, ou seja, o fato de ser mulher reforça não só o padrão recorrente desse tipo de violência, mas também acentua a impunidade dos agressores.
Diante da falta de medidas legais e ações efetivas, como acesso à justiça, proteção e garantia de direitos humanos a essas vítimas, em 2002 foi formado um Consórcio de ONGs Feministas para a elaboração de uma lei de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher.
Após muitos debates com o Legislativo, o Executivo e a sociedade, o Projeto de Lei n. 4.559/2004 da Câmara dos Deputados chegou ao Senado Federal (Projeto de Lei de Câmara n. 37/2006) e foi aprovado por unanimidade em ambas as Casas.
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Assim, em 7 de agosto de 2006, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei n. 11.340, mais conhecida como Lei Maria da Penha.
O tema da violência de gênero no Brasil, com foco nos casos de feminicídio e agressões contra mulheres, revela um cenário estatístico complexo e, por vezes, contraditório.
A análise dos dados de 2024, em comparação com 2023, exige uma leitura crítica das diferentes fontes disponíveis, uma vez que as conclusões são divergentes sobre a evolução do problema.
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O Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) divulgou em dezembro de 2024 que os casos de feminicídio haviam recuado 5,1% em 2024 em relação a 2023, com um total de 1.128 mortes registradas até outubro.
Esse cenário, que sugere um resultado positivo das políticas públicas implementadas, como o aumento dos repasses do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) para o combate à violência contra a mulher, contrasta de forma acentuada com outros dados.
O Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (Raseam) 2025, do Ministério das Mulheres, reportou 1.450 feminicídios em 2024, o que representa um aumento de 12 casos em comparação com os 1.438 registrados em 2023.
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A CNN Brasil, citando o Mapa da Segurança Pública, apresentou um número similar, com 1.459 vítimas em 2024 contra 1.449 em 2023, indicando um aumento de 0,69%. O Jornal da Cultura, por sua vez, mencionou um número ainda maior, com 1.492 casos em 2024.
A discrepância desses números não é apenas uma questão de variação estatística, mas um problema metodológico e de subnotificação sistêmica.
O "Informe Feminicídios no Brasil 2023", do Laboratório de Estudos de Feminicídios no Brasil (MFB), destaca que a aplicação da Lei nº 13.104/2015, que tipifica o feminicídio, é frequentemente restritiva e condicionada à Lei Maria da Penha.
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Essa limitação legal invisibiliza um universo de mortes violentas de mulheres que poderiam ser classificadas como feminicídios, especialmente aquelas que não se enquadram no contexto de violência doméstica e familiar, como as que afetam mulheres indígenas ou mulheres trans.
Dessa forma, os dados oficiais podem subestimar a real dimensão do problema. A detecção de 1.706 feminicídios consumados em 2023.
Os dados de 2024 reforçam padrões históricos e estruturais da violência de gênero no Brasil, que evidenciam a persistência de vulnerabilidades sociais e raciais.
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O perfil das vítimas de violência adulta (20 a 59 anos) demonstra uma desigualdade racial sistêmica. Segundo o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, 60,4% dos casos de violência contra mulheres adultas foram cometidos contra mulheres pretas e pardas, enquanto 37,5% das vítimas eram mulheres brancas.
Essa proporção alarmante sublinha a interseccionalidade entre raça e gênero na dinâmica da violência, indicando que mulheres negras estão desproporcionalmente mais expostas ao risco.
O ambiente doméstico continua sendo o local de maior perigo para as mulheres, um padrão que se mantém há anos. Em 2024, a residência foi o local de 71,6% das notificações de violências domésticas, sexuais e outras formas de agressão contra a mulher.
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A maioria dos agressores (76,6% nos casos de violência doméstica) é do sexo masculino. O vínculo afetivo é um fator de risco predominante, com 8 em cada 10 mulheres vítimas de feminicídio sendo assassinadas por companheiros ou ex-companheiros.
Esses dados confirmam que a casa, tradicionalmente concebida como um espaço de refúgio, é, na realidade, o principal palco para a violência de gênero.
A combinação do lar como espaço de risco, o vínculo afetivo como fator determinante e a desproporção racial no perfil das vítimas aponta para um problema estrutural que exige intervenções que vão além da punição, focando na prevenção e na desconstrução de comportamentos violentos.
A luta contra a violência doméstica ganhou força com a Lei Maria da Penha, mas números mostram que a batalha está longe de acabar. De Maria a Juliana, o retrato da sociedade ainda segue sendo o mesmo: os casos de feminicídio e violência de gênero ainda permeiam a sociedade brasileira – pautada por uma estrutura patriarcal que proporciona a sensação de impunidade para agressores.
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