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Cotidiano

Aniversário da terra Yanomami tem rituais e discussão sobre ameaças

O aniversário de 30 anos da homologação da Terra Indígena Yanomami, em 25 de maio de 1992, foi comemorado com uma série de eventos festivos e políticos

Natália Brito

03/06/2022 às 10:45  atualizado em 03/06/2022 às 10:51

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Tribo Yanomami

Tribo Yanomami | João Claudio Moreira Funai

O aniversário de 30 anos da homologação da Terra Indígena Yanomami, em 25 de maio de 1992, foi comemorado com uma série de eventos festivos e políticos em uma comunidade localizada na área ocupada pela etnia, entre os estados de Roraima e Amazonas.

Uma assembleia de líderes de diferentes comunidades de povos yanomami e ye'kwana marcou o encerramento de uma semana de atividades, na segunda-feira (30).

Em meio à festa, as ameaças recentes aos moradores da área foram narradas por vítimas diretas de estupros e agressões e debatidas por políticos e lideranças indígenas de todo o país, presentes para uma demonstração de união do movimento indígena e de apoio à Hutukara, a organização yanomami liderada por Davi Kopenawa, que coordenou o evento.

Durante o encontro foi anunciada a formação de uma associação de líderes das etnias mais afetadas pelas recentes invasões de garimpeiros e grileiros, desde o início do governo Jair Bolsonaro.

A Aliança em Defesa dos Territórios junta representantes kayapó, munduruku, yanomami e ye'kwana, tendo entre seus porta-vozes o cacique Megaron, liderança tradicional da Terra Indígena do Xingu e sobrinho do cacique Raoni Metuktire.

A comemoração aconteceu na comunidade de Xihopi, no sul da área yanomami, ao norte do Amazonas. A comunidade é localizada em uma vasta área de floresta bem preservada, distante das regiões mais assediadas pelo garimpo ilegal.

Os eventos foram marcados por manifestações políticas de yanomami, de diversos líderes indígenas de outras áreas do país e personalidades não indígenas do Brasil e de outros países, como a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), a deputada federal Joênia Wapichana (Rede-RR), o cacique Megaron Txucarramãe e o ativista Ailton Krenak.

Também esteve presente o ex-presidente da Funai (1991-93) Sydney Possuelo, que foi responsável pela demarcação da terra, em 1992, durante o governo do presidente Fernando Collor.

Aos 82 anos, Possuelo foi homenageado pelas lideranças presentes como o presidente da Funai que reconheceu mais terras indígenas, cerca de 170, em sua gestão de três anos.

FESTA E DEBATES

As comemorações na comunidade de Xihopi tiveram início no dia 23, com uma festa de recepção para cerca de 500 pessoas. Os yanomami costumam receber os forasteiros para suas festas com danças e pinturas dos que chegam.

Depois, no centro da praça central da maloca, líderes de fora e da comunidade, dois a dois, fazem um ritual de troca de informações, em que narram, como em um espetáculo de repentistas, episódios acontecidos nos últimos tempos, desde o último encontro.

É um ritual ao mesmo tempo artístico (musical e poético) e informativo. Essa atividade pode durar toda a noite da chegada dos visitantes.

No dia seguinte, começou um fórum de dois dias, em que lideranças debateram as ameaças recentes aos direitos indígenas no cenário político nacional e perspectivas para os próximos 30 anos. Falaram representantes indígenas locais e os de outras regiões do país. À noite foram apresentados filmes.

O segundo dia do fórum foi marcado por uma série de depoimentos de representantes de comunidades da terra indígena.

Os mais chocantes foram os relatos dos moradores das comunidades mais assediadas pelos invasores, como Fernando, líder de Palimiú, onde no ano passado garimpeiros ligados a organizações criminosas dispararam tiros e jogaram bombas caseiras durante vários dias, depois que a comunidade realizou um bloqueio sanitário no rio Uraricoera, para impedir a disseminação da Covid-19 na região.

Outro depoimento impressionante foi o de uma líder chamada Noêmia, que descreveu a sedução de jovens de sua comunidade: os garimpeiros, que antes "compravam" adesões com ouro, agora usam sistematicamente a cocaína, até então desconhecida entre os indígenas -também mais um sinal da associação entre os traficantes de ouro e de drogas, na organização do garimpo.

DOCUMENTO DE UMA IDEOLOGIA

O ex-presidente da Funai Sydney Possuelo apresentou um documentário sobre a campanha pela criação da Terra Yanomami e sobre sua homologação, seguida da demarcação da terra em 90 dias, até hoje um recorde.
O filme narra o combate à invasão garimpeira iniciada em meados dos anos 1980, que chegou a juntar cerca de 40 mil mineradores ilegais dentro da área.

As invasões geraram uma epidemia de malária e a morte de cerca de 15% da população yanomami no Brasil. Antes de iniciar a demarcação, o governo federal retirou os invasores.

O documentário mostra também a fórmula usada para a expulsão: vigilância das entradas da terra indígena, asfixiando o abastecimento dos trabalhadores ilegais. Depois da exibição, Possuelo comentou que o método poderia ser usado para expulsar os invasores atuais.

O filme deixa clara a inversão do ideário conservador sobre a questão indígena ao longo das últimas décadas: 30 anos atrás, o reconhecimento da terra foi feito por um presidente conservador, eleito com um programa liberal, e o processo foi conduzido por um ministro da Justiça com formação militar, o coronel Jarbas Passarinho, que teve participação intensa como ministro de vários governos da ditadura.

Como relator na Assembleia Constituinte, Passarinho foi o autor do texto sobre direitos indígenas da Constituição de 1988, que ele baseou no Estatuto do Índio, da Constituição outorgada pelo governo militar, em 1969.

Em seu discurso, diante da sede da Presidência, em Brasília, Collor justificou a homologação com base no programa de governo vitorioso nas urnas na campanha de 1989 (ele venceu o PT de Lula).

Trinta anos depois, a cúpula do governo atual, que também se reivindica conservador e liberal, promete não demarcar terras indígenas, frequentemente defende o garimpo ilegal em terras protegidas e apresenta os direitos indígenas como se fossem ameaça à soberania nacional ou representação de interesses estrangeiros. Uma análise dessa mudança ideológica desafia os estudiosos de ciência política.

DISCURSO APOCALÍPTICO

A última intervenção da mesa que buscou projetar os desafios para a Terra Yanomami nos próximos 30 anos foi feita pelo anfitrião Davi Kopenawa.

Desafinando o tom festivo de outros líderes, que buscavam imprimir uma mensagem otimista, Davi fez um discurso bastante duro, de tom apocalíptico, referindo-se ao grave risco colocado pelas mudanças climáticas que afetam o planeta e o seu agravamento pela destruição das florestas, desde logo na Terra Yanomami.

"No começo do mundo, o céu caiu e matou o primeiro povo que nasceu. Nós somos o segundo povo, aquele que segurou o céu e pôde sobreviver", narrou, resumindo a cosmogonia presente em seu livro "A Queda do Céu", de 2015, para então dizer que atualmente vivemos o risco de um novo fim.

"Nós, povos indígenas do Brasil, não vamos morrer sozinhos. Vão morrer os indígenas, os não indígenas, o meio ambiente, morrem as florestas, suja a água, morre todo o planeta. O petróleo estragou o ar da terra, que foi criado para nós respirarmos. Agora, o que nós perguntamos é se vamos morrer queimados ou afogados? É o que estamos vendo por toda parte. Mas nós, yanomami, vamos morrer lutando."

PAJELANÇA E ARCO-ÍRIS

Na quarta-feira, 25, à tarde, terminados os depoimentos, aconteceu um evento de forte significado espiritual para os indígenas: por ocasião dos 30 anos da criação da Terra Indígena, 30 xamãs realizaram uma "pajelança", uma longa performance em que, um a um, ingerem o pó alucinógeno yãkoana usado pelos pajés.

Sob efeito da droga, empreendem uma viagem espiritual a um mundo invisível aos demais, onde encontram espíritos chamados "xapiri", que têm função mercurial, de ligação entre os diversos planos do cosmos.

Durante esse processo, os xamãs, um após o outro, fazem um espetáculo de dança e cantos tradicionais, no qual narram o que estão ouvindo dos espíritos "xapiri".

Depois dessa pajelança, na praça central da maloca de Xihopi, quando Davi Kopenawa se reunia com jovens da comunidade para fazer uma foto coletiva, um grande arco-íris se formou no céu, emoldurando seu encontro com Ailton Krenak, seu companheiro do início do movimento indígena que resistiu à ditadura militar, no fim dos anos 1970, e reivindicou os direitos conquistados na Constituição de 1988.

Davi atribuiu o arco-íris ao chamado dos xamãs.

PERSONALIDADES PRESENTES

Líderes indígenas presentes

Deputada federal Joênia Wapichana (Rede-RR); Cacique Megaron Txucarramãe, Terra Indígena do Xingu; Ativista e escritor Ailton Krenak; Cacique Dotô Takak Ire, Kayapó da Terra Indígena Mekragnoti; Alessandra Munduruku, da Federação de Povos Indígenas do Pará; Pajé Fabiano Karo Munduruku, de Itaituba (PA); Maial Paiakan Kayapó, Terra Indígena Kayapó; Ianukulá Kaiabi, da Associação Terra Indígena do Xingu (Atix); Watatakalu Yawalapiti, do Movimento Mulheres do Xingu. A líder da APIB (Associação dos Povos Indígenas do Brasil) Sonia Guajajara, não pode embarcar por ter contraído a Covid-19.

Outras personalidades presentes

Senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA); Jan Jarab, observador para a América do Sul do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU; Lívia Kramer, representante do governo da Noruega; Fiona Watson, da ONG Survival International; Anne Groenlund, da Rainforest Foundation; Daniela Lerda, da ONG internacional Nia Tero; Rodrigo Junqueira e Marcos Wesley, do Instituto Socioambiental; Sydney Possuelo, ex-presidente da Funai; Corrado Dalmonego, missionário católico; Carlo Zacquini, missionário católico, trabalha com os Yanomami desde os anos 1960. O jornalista viajou a convite da Hutukara Associação Yanomami

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