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A professora Lia Vainer Schucman é uma das intelectuais mais respeitadas do País em relações étnico-raciais | Renato Parada/Divulgação
Os deputados estaduais de Santa Catarina aprovaram na semana passada um projeto de lei que extingue as cotas raciais na universidade estadual e instituições de ensino que recebem dinheiro do governo. A medida causou polêmica, por ser vista como fundamental para a mudança de vida de milhões de jovens negros pelo Brasil e ser considerada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2012.
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Uma das personalidades que se mostraram temerosas com a decisão da Assembleia Legislativa do estado (Alesc) foi Lia Vainer Shucman, uma das intelectuais mais respeitadas do País no debate sobre relações étnico-raciais.
Em entrevista à Gazeta, a professora doutora do Departamento de Psicologia da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e autora de livros sobre branquitude e relações raciais (leia mais ao fim da entrevista) disse que a aprovação do projeto pela Alesc é um retrocesso em políticas públicas e passa uma mensagem perigosa à sociedade.
“É um recado de negação do racismo e, ao mesmo tempo, de preservação de privilégios racialmente estruturados, ainda que isso seja feito sob o discurso da neutralidade”, analisou a professora.
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Segundo a intelectual, as cotas raciais foram decisivas para alterar o perfil social e racial das universidades públicas brasileiras, produzindo diversidade intelectual e diversificação de temas de pesquisas.
“Elas romperam com a falsa ideia de que o acesso ao ensino superior era resultado apenas de esforço individual, quando, na prática, sempre foi mediado por desigualdades raciais profundas”, afirmou ainda.
A professora ainda disse que a decisão da Alesc mirou apenas as cotas raciais, sem atingir as cotas sociais, por exemplo,”porque as cotas raciais são as únicas que confrontam diretamente a branquitude como posição de privilégio”.
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Entidades como o Ministério Público e a Defensoria Pública questionam a validade constitucional da medida, que ainda seguirá para sanção do governador Jorginho Mello (PL).
Leia, abaixo, a entrevista na íntegra de Lia Vainer Schucman.
Lia Vainer Schucman - A decisão da Assembleia Legislativa de Santa Catarina passa um recado muito claro: o racismo estrutural não é reconhecido como um problema público legítimo. Ao retirar especificamente as cotas raciais, o parlamento afirma que a desigualdade racial não merece ser enfrentada por políticas próprias, como se fosse um “exagero”, uma pauta identitária ou uma distorção do princípio da igualdade. É um recado de negação do racismo e, ao mesmo tempo, de preservação de privilégios racialmente estruturados, ainda que isso seja feito sob o discurso da neutralidade.
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As cotas raciais foram decisivas para alterar o perfil social e racial das universidades públicas brasileiras. Elas romperam com a falsa ideia de que o acesso ao ensino superior era resultado apenas de esforço individual, quando, na prática, sempre foi mediado por desigualdades raciais profundas. As cotas permitiram o ingresso massivo de estudantes negros e indígenas, produziram diversidade intelectual, ampliaram temas de pesquisa e transformaram a própria universidade. Não se trata apenas de acesso, mas de democratização real de um espaço historicamente branco e elitizado.
Porque as cotas raciais são as únicas que confrontam diretamente a branquitude como posição de privilégio. Cotas sociais, de renda ou de escola pública não questionam frontalmente a hierarquia racial. Elas são mais facilmente aceitas porque mantêm intacta a ideia de que raça não importa. Ao extinguir apenas as cotas raciais, a Alesc afirma que desigualdade econômica é um problema legítimo, mas desigualdade racial, não. Essa escolha não é técnica, é política e ideológica.
Interfere diretamente. A autonomia universitária pressupõe que as universidades tenham liberdade para definir seus projetos pedagógicos e suas políticas de inclusão, com base em evidências científicas e diagnósticos institucionais. Quando o legislativo impõe a retirada de um critério reconhecido como constitucional e eficaz, ele invade um campo que não lhe compete, fragilizando a universidade pública e a subordinando a disputas ideológicas externas.
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Do ponto de vista jurídico, sim. O Supremo Tribunal Federal já reconheceu reiteradas vezes a constitucionalidade das cotas raciais e sua compatibilidade com o princípio da igualdade material. Mas decisões judiciais não eliminam disputas políticas. O que vemos é uma tentativa de contornar o reconhecimento jurídico por meio do legislativo estadual, apostando na produção de consensos sociais baseados na negação do racismo, mesmo contra o acúmulo constitucional existente.
Porque o racismo no Brasil opera de forma sofisticada, associado ao mito da democracia racial e à ideologia do mérito. Quando sujeitos brancos ocupam historicamente os espaços de poder, isso é visto como natural. Quando negros e indígenas passam a acessá-los por políticas públicas, isso é lido como privilégio. O que incomoda não é a existência de vantagens, mas quem pode usufruí-las. As cotas tornam visível algo que sempre existiu: que o acesso à universidade nunca foi neutro. E essa visibilização produz resistência, ressentimento e reação.
* Lia Vainer Schucman é doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo, com estágio de doutoramento no Centro de Novos Estudos Raciais da Universidade da Califórnia. É professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisadora nas áreas de psicologia e relações étnico-raciais. Autora dos livros Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo: Branquitude, Hierarquia e Poder na Cidade de São Paulo (Veneta, 2020) e Famílias Interraciais: tensões entre cor e amor (Fósforo, 2022). Organizadora do livro Branquitude: diálogos sobre racismo e antirracismo (Fósforo, 2023).
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