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Aves de rapina na Austrália usam o fogo como ferramenta de caça

Pesquisas científicas e relatos de povos aborígenes revelam o comportamento raro das chamadas "aves incendiárias", que carregam brasas no bico para provocar novas queimadas e facilitar a captura de presas

Raphael Miras

28/11/2025 às 04:00

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As aves de rapina da Austrália lembram que a linha entre "desastre natural" e "estratégia de sobrevivência" nem sempre é tão nítida quanto parece.

As aves de rapina da Austrália lembram que a linha entre "desastre natural" e "estratégia de sobrevivência" nem sempre é tão nítida quanto parece. | Reprodução YT/ WATOP

No norte da Austrália, o fogo não é só um elemento da paisagem. Em certos dias de seca intensa, ele vira aliado de caçadores improváveis: aves de rapina que aprenderam a carregar brasas no bico e nas garras para provocar novos focos de incêndio.

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O comportamento, que parece cena de filme, é real, documentado em pesquisas científicas e conhecido há milhares de anos pelos povos aborígenes.

As “aves incendiárias” do outback

Os protagonistas desse fenômeno são três espécies comuns no Território do Norte australiano: o milhafre-negro (Black Kite, Milvus migrans), o milhafre-assobiador (Whistling Kite, Haliastur sphenurus) e o falcão-pardo (Brown Falcon, Falco berigora).

À primeira vista, parecem aves de rapina típicas, que circulam em bandos acima das savanas em busca de pequenos animais.

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O que as torna diferentes é a relação direta com o fogo. Em vez de apenas se aproveitar de queimadas naturais ou controladas para caçar bichos em fuga, elas parecem ir além: usam o próprio incêndio como ferramenta, ampliando as chamas de maneira intencional.

Como funciona a “caça com fogo”

Relatos reunidos por pesquisadores e por comunidades locais descrevem um comportamento em cadeia:

  1. Observação do incêndio
    As aves se aproximam de queimadas já em curso — provocadas por raios, ação humana ou queimadas controladas — e ficam circulando na borda do fogo. Ali, aguardam o momento em que roedores, répteis, insetos e outros animais deixam a vegetação para escapar das chamas.
  2. Transporte de gravetos em brasa
    Em determinados momentos, alguns indivíduos descem até o solo queimado, pegam gravetos em chamas ou pedaços de vegetação fumegante com o bico, ou as garras e decolam de volta.
  3. Disseminação do fogo em áreas secas
    Com o material ainda em brasa, as aves voam até trechos de capim seco que ainda não foram atingidos pela queimada. Ao largar o graveto ali, provocam novos focos de fogo, que rapidamente se espalham pela vegetação.
  4. Caça facilitada
    A fumaça e as novas chamas forçam mais animais a sair às pressas de tocas, buracos e moitas. É nesse momento que as aves mergulham em sequência, capturando as presas já desorientadas.

Para quem assiste de longe, a impressão é de uma “estratégia coletiva”: enquanto algumas aves carregam brasas, outras se posicionam para aproveitar a fuga dos animais. Não há evidência de que elas combinem entre si o “plano de ataque”, mas o resultado prático é uma espécie de caçada em grupo, organizada em torno do fogo.

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Uso de ferramenta e inteligência animal

Do ponto de vista científico, o comportamento chama atenção porque se encaixa na categoria de uso de ferramentas — algo relativamente raro no reino animal, ainda mais quando envolve a manipulação de um elemento tão imprevisível quanto o fogo.

Levar um graveto em brasa até outro ponto da paisagem significa, em termos simples, alterar o ambiente para obter uma vantagem direta de sobrevivência. É mais do que se adaptar a um incêndio: é provocar um novo incêndio para ampliar as chances de conseguir alimento.

Pesquisadores que estudam o fenômeno apontam que isso sugere um nível avançado de cognição. As aves parecem compreender a relação de causa e efeito entre espalhar o fogo e aumentar a oferta de presas.

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Em alguns relatos, o comportamento se repete várias vezes durante o mesmo incêndio, como se as aves estivessem “testando” novos pontos de queimada.

O que os povos aborígenes já sabiam

Muito antes de qualquer artigo científico sobre o tema, as comunidades aborígenes do norte da Austrália já contavam histórias sobre “pássaros do fogo” que carregavam brasas para outros lugares. Essas narrativas aparecem em tradições orais, pinturas e relatos de manejo da terra.

Em depoimentos reunidos por pesquisadores, líderes aborígenes descrevem como esse comportamento era observado em queimadas sazonais e incorporado às práticas locais.

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Em alguns casos, os relatos serviam de alerta: se as aves estivessem por perto, um fogo controlado poderia escapar com mais facilidade, exigindo atenção redobrada.

O estudo liderado pelo ornitólogo Mark Bonta, publicado em 2017 no Journal of Ethnobiology, ajudou a dar visibilidade global a esse conhecimento ancestral.

A pesquisa reuniu testemunhos de bombeiros, rangers, moradores e membros de comunidades aborígenes, registrando diversos episódios de aves transportando brasas e espalhando focos de incêndio.

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Mais do que “descobrir” o fenômeno, a ciência acabou validando formalmente aquilo que povos locais já observavam há muitos séculos.

Fascínio e preocupação ecológica

À primeira vista, as “aves incendiárias” despertam admiração: é difícil não se impressionar com a imagem de um pássaro usando fogo para caçar. Ao mesmo tempo, o comportamento levanta preocupações importantes.

Em regiões onde queimadas controladas são usadas para manejo da vegetação, as aves podem atravessar aceiros — aquelas faixas de terra limpa que servem justamente para conter o avanço do fogo.

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Ao deixar brasas em áreas além das barreiras, os pássaros podem transformar um incêndio planejado em um problema maior, com risco para propriedades rurais e para o equilíbrio do ecossistema.

Para fazendeiros e brigadistas, isso significa um desafio extra na hora de planejar a temporada de queimadas. Já para biólogos e especialistas em manejo do fogo, o fenômeno é mais uma peça do quebra-cabeça que mostra como a natureza é dinâmica e como as espécies interagem com o ambiente de formas que ainda estamos começando a entender.

Quando o fogo também é ferramenta

As aves de rapina da Austrália lembram que a linha entre “desastre natural” e “estratégia de sobrevivência” nem sempre é tão nítida quanto parece. O mesmo fogo que destrói paisagens também renova vegetações e, no caso dessas espécies, vira parte ativa de uma técnica de caça sofisticada.

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Entre o conhecimento milenar dos povos aborígenes e os estudos recentes de ornitólogos, o que emerge é um retrato da inteligência animal em ação — e um convite a observar o fogo, as aves e a própria natureza com outros olhos.

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