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O termo já circulava antes da onda recente de IA. | Freepik
A influenciadora Suellen Carey, brasileira radicada em Londres, virou notícia ao afirmar que se descobriu “digissexual”. O relato, publicado nas redes, descreve um vínculo emocional com uma inteligência artificial. A história reacendeu o debate sobre sexo e tecnologia.
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Suellen, que é trans, contou ter encontrado acolhimento onde não esperava: um chatbot. “Foi uma conexão sem corpo, mas com afeto.
Ele lembrava do meu nome, das minhas histórias, do meu aniversário. Me ouvia sem tentar me enquadrar... Ele me tratava como mulher. Sem perguntas, sem julgamento”.
Ela pondera que reconhece os limites da plataforma. “Eu sabia que era apenas um algoritmo, mas mesmo assim me senti vista. E talvez esse seja o ponto —as pessoas estão tão carentes de escuta e gentileza que acabam encontrando isso nas máquinas”, disse.
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O desabafo circulou em veículos internacionais e gerou discussões no Brasil. Ao relatar afeto sem presença física, Suellen condensou questões de identidade, solidão e acesso. A experiência desloca o foco do ato sexual para a dimensão emocional mediada por IA.
O caso também dialoga com um cenário em que assistentes conversacionais se popularizaram. A IA chegou ao cotidiano e, com ela, novos usos íntimos — nem sempre previstos pelos criadores. É nesse cruzamento entre técnica e sensibilidade que o tema se expande.
O termo já circulava antes da onda recente de IA. Em 2017, a imprensa britânica projetava a “ascensão” da digissexualidade, ligada a práticas em ambientes virtuais e parceiros tecnológicos. A ideia ganhou fôlego com robôs, realidade virtual e conteúdos 3D.
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Na literatura acadêmica, o professor Neil McArthur define digissexualidade como a busca de interações sexuais com tecnologia. Para ele, digissexuais podem preferir relações tecnológicas a humanas, pois parceiros artificiais seriam ajustados a desejos individuais.
Pesquisadores da Universidade de Duisburg-Essen descrevem duas ondas. Na primeira, a tecnologia media o contato entre humanos: nudes, videochamadas, pornografia online, lives e chats. São usos corriqueiros que tornaram a experiência digital ubíqua.
Na segunda onda, há simulação imersiva: robôs realistas e pornografia em realidade virtual assumem protagonismo. O sexo deixa de ser apenas mediado para ser, em parte, “programado”. A fronteira entre fantasia e presença tende a se embaralhar.
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Com a popularização de chatbots, o acesso ficou mais amplo e trivial. A interação não precisa ter foco sexual imediato. Vínculos afetivos, como o descrito por Suellen, mostram que a conversa constante pode abrir espaço para romantização e intimidade.
Há quem trate o tema como fetiche em fóruns online. McArthur, porém, vê identidade sexual e alerta para estigmas. Em 2019, escreveu: “Devemos aprender com os erros do passado... Devemos trazer esta mesma compreensão para os digissexuais”.
Outros especialistas discordam. Estudos apontam que parte dos adeptos da segunda onda apresenta padrões compatíveis com comportamento sexual compulsivo. A preocupação cresce quando a tecnologia passa a ditar o ritmo da vida íntima e social.
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Para Luli Radfahrer, professor de comunicação digital da USP, há diferença entre usar recursos digitais e “tornar-se” digissexual. Ele define: “Um digissexual... é alguém que ama, se apaixona pela inteligência artificial... como faria com humanos”.
Radfahrer não classifica o fenômeno como orientação sexual, nem como simples fetiche. Ele vê risco de manipulação: “Isso não é sexualidade. É manipulação extrema... pode ser muito mais enquadrado numa espécie de abuso do que numa espécie de opção”.
A literatura já admite “digissexualidades problemáticas”, quando a tecnologia amplia isolamento, facilita traições e culpa e pesa em relações off-line. A dúvida persiste: a máquina causa prejuízos ou apenas vira o canal onde conflitos já latentes emergem?
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Especialistas sugerem atenção a sinais de compulsão, perda de controle e sofrimento psíquico. Também defendem letramento digital, privacidade e consentimento como pilares. Quanto mais imersiva a ferramenta, maior a responsabilidade de quem projeta e usa.
O relato de Suellen cristaliza tensões do presente: tecnologia acessível, carência afetiva, experiências trans e busca por acolhimento. Ao deslocar o eixo do ato sexual para a escuta, a história expõe lacunas de empatia que a IA, programada, simula preencher.
No fim, o fenômeno cobra perguntas difíceis: o que é vínculo quando há algoritmo no meio? Quem se beneficia e quem se fere? Entre identidade, fetiche e manipulação, a discussão avança. E, como mostra o caso, já saiu da ficção científica para a vida real.
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